06 – Em casa não havia um lugar para Maria ?

lugarNuma fria noite de Dezembro, há cerca de 2000 anos, um casal de jovens esposos caminhava para Belém.

O imperador de Roma, César Augusto,tinha ordenado um recenseamento em todo o império,e cada súbdito romano devia ser registadona sua própria cidade…

A história que nos contaram

José, o carpinteiro, devia ir recensear-se em Belém, donde era oriundo. Com ele, montada num burro, viajava Maria, sua esposa, em avançado estado de gravidez, enfrentando assim uma viagem cansativa de mais de 150 km, a partir de Nazaré.Quando, finalmente, entraram na cidade da sua família, José sentiu-se mais tranquilo: esperava encontrar com facilidade um albergue, atendendo à condição em que se encontrava a sua mulher. Mas andou de casa em casa, e encontrou-as todas a abarrotar de gente. O censo tinha feito regressar muitos betlemitas, dos diversos pontos do país, para se inscreverem nas listas romanas.

Em vão buscou um sítio onde acomodar Maria, para ela poder dar à luz o seu filho. Não o encontrou. De repente viu uma estalagem. Ali, com certeza, ia conseguir alojamento! Mas a decepção foi enorme, quando o estalajadeiro o informou de que não restava nenhum canto disponível.

Finalmente, José, com Maria – que se movia com dificuldade e já acusava as dores do parto – dirigiram-se para uma gruta que servia de estábulo para os animais, e acabaram por refugiar-se lá dentro. Na solidão daquela gruta, Maria deu à luz o seu primogénito e reclinou-o logo num pesebre, isto é, na manjedoura onde se coloca a palha para alimento dos animais, a qual, pela sua forma alargada, lhe serviu de berço. Porque os homens que Ele vinha salvar lhe fecharam as suas portas, o Filho de Deus tinha nascido num estábulo de animais!

Nascimento de Jesus

Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto para ser recenseada toda a terra. Este recenseamento foi o primeiro que se fez, sendo Quirino governador da Síria. Todos iam recensear-se, cada qual à sua própria cidade.

Também José, deixando a cidade de Naza-ré, na Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e linhagem de David, a fim de se recensear com Maria, sua esposa, que se encontrava grávida.

E, quando eles ali se encontravam, comple-taram-se os dias de ela dar à luze teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria.» (Lc 2,1-7)

O Evangelho relata isso?

Mas esta narrativa assim contada, e que temos ouvido e meditado inúmeras vezes, especialmente ao chegar o Natal, coloca dois sérios problemas.

O primeiro é que não coincide exactamente com o evangelho de São Lucas, do qual está tomada. Com efeito, este, em nenhuma parte diz que Maria tinha chegado a Belém quase a dar à luz. O texto só afirma: «E, quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz» (Lc 2,6).

O evangelho também não conta que o casal tenha andado de casa em casa e de pousada em pousada à procura de alojamento. Esta é uma simples dedução do facto inexplicado de Maria ter dado à luz numa gruta destinada ao refúgio de animais, e porque se afirma «não haver lugar para eles na hospedaria» (Lc 2,7).

A imprudência de José

O segundo inconveniente é a grande quantidade de interrogações que suscita:

a) Se José vinha apenas por causa de u-ma breve prática administrativa, e não sendo então obrigatório a mulher apresentar-se no local do recenseamento, pois bastava a presença do chefe de família, para que havia ele de levar Maria até Belém?

b) Como foi ele assim tão imprudente, ao esperar até à última hora, e viajar quando Maria já estava prestes a dar à luz?

c) Um homem justo e previdente, como José, não foi capaz de prever um lugar mais próprio para o parto da sua esposa, sabendo que aquele que viria ao mundo era nada menos que o Filho de Deus?

d) Se ele próprio era de Belém, e voltava à sua própria cidade, como é que não tinha ali uma casa onde alojar-se?

e) Considerando que, para os povos do oriente, a hospitalidade era um dever sagrado, no qual estava em jogo o próprio honra, não é estranho que ninguém abrisse as portas a José, nem sequer um parente, mesmo vendo o estado de Maria?

E tudo por causa de uma palavra…!

Estas perguntas indicam-nos que, assim postas as coisas, estamos num beco sem saída. Mas todo o problema radica no facto de termos feito uma leitura errónea do evangelho, acrescentando depois muito da nossa imaginação àquilo que o texto relata.

A culpa é de uma palavra que, por ser mal traduzida, criou confusão, e assim estimulou a fantasia de gerações de leitores. Trata-se do vocábulo gregokatályma, que a maioria das Bíblias traduzem por “pousada”, “albergue”, “hospedaria”. Traduzida assim esta palavra, naturalmente a frase do Evangelho dirá mesmo que «não havia para eles lugar na hospedaria».

Mas, no grego bíblico, a palavra katályma também tem o significado de “habitação”, “quarto”, “dependência”; uma parte especial da casa mais separada, ou reservada.

A “katályma”

O que era realmente a katályma, onde não havia lugar para eles? Para entender bem o sentido do evangelho de Lucas, devemos situar-nos no ambiente da Palestina, onde as casas não tinham vários quartos, como as nossas podem ter actualmente.

Com a precariedade da construção naquele meio, as casas tinham apenas uma divisão central, onde havia de tudo: armários, ferramentas, bancos, despensas, cozinha. Ali, ao chegar a noite, cada qual estendia a esteira para o descanso, no seu lugar preferido.

Esta divisão central era, pois, o pequeno mundo doméstico em redor do qual girava toda a vida do lar e o movimento das pessoas, mais ou menos como os quartos de muitas das nossas casas rurais.

Mas, além da sala principal, as casas tinham anexo algum espaço mais pequeno, reservado, às vezes utilizado para arrumações, ou para hóspedes eventuais, com separadores para maior privacidade.

A divisão das parturientes

Esta divisão servia, sobretudo, para quando em casa havia alguma parturiente. Porque a mulher, em Israel, quando dava à luz um filho, ficava impura durante 40 ou 80 dias (conforme fosse do sexo masculino ou feminino), pela perda de sangue que tinha sofrido. Os objectos que ela tocasse, o leito onde repousava, ou qualquer lugar onde se tivesse sentado, ficavam impuros. E quem tocasse nela, ou entrasse em contacto com algum utensílio por ela tocado, incorria automaticamente na impureza (Lv 15,19-24).

Ora, entre os judeus, uma pessoa impura ficava isolada socialmente, diminuída perante Deus e os outros; não podia ir ao templo nem relacionar-se com ninguém, até terminarem os ritos de purificação, que eram complicados e levavam o seu tempo.

Daí as precauções que se tomavam em cada parto, e o motivo pelo qual, aquela que acabava de ser mãe, era instalada na katályma – isto é, no anexo ou dependência separada da casa, e não no ambiente comum.

Assim, tudo se torna mais claro

Agora suponhamos, por um momento, que o evangelista Lucas, quando escreveu que não havia lugar na katályma, não estava a pensar numa hospedaria, como as Bíblias traduzem geralmente, mas naquela divisão de uma casa particular, que é a outra possibilidade que oferece esta palavra grega.

Então, de um golpe, ficam esclarecidas todas as interrogações, o texto evangélico torna-se mais coerente, e a figura de José torna a adquirir relevo como pai responsável e esposo prudente e previdente.

Vamos, pois, ler agora todo o relato do Evangelho à luz desta nova explicação, sem interpretações arbitrárias nem acréscimos espúrios.

Nova leitura do texto

Ao saber que o imperador de Roma tinha ordenado um recenseamento, José, momentaneamente a residir na Galileia, decidiu voltar para Belém, visto ser dali (Lc 2,4).

O mais natural teria sido deixar a sua jovem esposa Maria na Galileia, pois não era necessário que ela comparecesse perante as autoridades do censo. Se a leva consigo, apesar das condições em que ela se encontra, é porque pensa instalar-se definitivamente em Belém. O qual é lógico, tendo em conta que ele era desta cidade e que teria aqui a sua parentela, os seus bens e as suas propriedades.

Se José tinha domicílio em Belém, então é justo pensar que trouxesse Maria para estabelecê-la na sua própria casa.

Para isso, puseram-se a caminho com tempo, com a prudência dos santos e para evitar as dificuldades de última hora. A viagem demorar-lhes-ia uns dez dias, pelo caminho longo e acidentado de então, e teriam chegado à sua pátria vários meses antes do parto.

A intimidade de uma gruta

Neste ponto, o evangelho afirma que «quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz» (Lc 2,6).

Mas era a época do censo. Muitos betlemitas, que tinham regressado de todas as partes, enchiam a cidade instalados nas salas das hospedarias e casas particulares.

Também Maria e José teriam alojado em todas as dependências da sua casa parentes e amigos.

É então que, ao aproximar-se a hora do parto, Maria se dá conta de que não havia lugar onde dar à luz digna e discretamente, sem incomodar nem ser incomodada, e sobretudo sem tornar impuros todos os moradores da casa. Ou seja, não havia lugar na dependência reservada da casa, a katályma.

Por isso, sem ofenderem nenhum dos seus parentes, retiraram-se para a gruta-estábulo que todas as casas de Belém tinham, e ainda têm, para albergar os animais.

E ali, numa gruta da sua própria casa, adaptada como refúgio e asseada por José o melhor possível, pouco depois Maria deu à luz um menino. As outras mulheres ajudaram-na a envolvê-lo numa faixa. E como berço adaptaram uma pequena manjedoura – isto é, um caixote onde se punha o alimento para os animais domésticos – limparam-no bem, encheram-no com feno fresco e cobriram-no com um pano.

É isto o que se deduz, se lermos o texto. O qual, traduzido agora correctamente, diz: «E deu à luz o seu filho primogénito, envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não tinham lugar na sala» (Lc 2,7).

 “Para eles”, não havia lugar

Por isso, a seguir, o evangelista Lucas, sempre preciso nos seus pormenores, esclarece que não havia lugar «para eles». O qual indica que, para outros, teria havido um lugar qualquer para descansar, uma vez que as camas, na Palestina, são apenas uma esteira estendida no chão, como dissemos.

Mas para eles – que deviam observar as prescrições da Lei judaica, relativas à impureza ritual – para eles, não.

Poderia acrescentar-se mais ainda: para eles, tão renitentes em incomodar; para eles, tão delicados e tão convictos do Mistério que zelosamente guardavam – para eles, não havia lugar no meio do vaivém, do ruído e da promiscuidade que naquela noite reinariam na parte superior da casa.

Quer dizer que foi numa das grutas destinadas para estábulo, da casa da família de José em Belém, onde teve lugar o nascimento do Messias.

Que no grego de Lucas a palavra katályma significa a divisão reservada de uma casa, e não uma pousada, é confirmado pelo episódio da última ceia. Quando Jesus dá instruções a Pedro e a João para irem a uma casa da cidade e preparar a Páscoa, indica-lhes: «e dizei ao dono da casa: “O Mestre manda dizer-te: onde é a sala (katályma), em que hei-de comer a ceia pascal com os meus discípulos?”» (Lc 22,11). Isto é, Jesus não celebrou a última ceia em nenhuma pousada, mas numa casa, cujo dono lhe preparou uma divisão reservada para Ele e os seus apóstolos.

Mais provas

Confirma-o, também, a parábola do bom samaritano. Quando Lucas relata que este levou o ferido até uma pousada, usa a palavra pandogéion para se referir a ela, e não a palavra katályma.

Assim, se quando Lucas usa a palavra katályma não pensa numa pousada, mas na divisão reservada de uma casa, devemos pensar que, no relato de Maria e José, essa palavra devia ter o mesmo significado.

Finalmente, a tradição arqueológica partilha este modo de pensar. Com efeito, na cidade de Belém ainda existe a gruta que durante séculos foi identificada pelos peregrinos como a do nascimento de Jesus. E todos os estudos arqueológicos que se realizaram à volta dela revelam que não se trata de uma gruta qualquer, perdida no meandro de algum carreiro da Palestina, mas incorporada numa vivenda como recinto estável. Em vez daquela casa, actualmente existe uma basílica majestosa que a comemora.

Um José como deve ser

Algumas paróquias, ao chegar o Natal, costumam representar este episódio natalício com cenários infantis, nos quais Maria e José, depois de serem rejeitados em várias partes, acabam por se refugiar num estábulo, onde vem a nascer o Menino.

Mostrando a chegada de José e Maria a Belém à última hora e de noite, batendo ansiosamente às portas das casas e pousadas, e sendo recusados em todas elas, apresentam a figura de um pobre José inconsciente, agindo com negligência, e cuja torpeza quase provocava um mau parto da sua esposa.

Na verdade, porém, trata-se de uma triste deformação. José de Belém foi um verdadeiro pai para Jesus e um autêntico esposo para Maria, e o seu papel revelou-se essencial no plano de Deus.

A lição que ficou

Para nascer, Jesus Cristo tinha a sua morada, o seu tecto, a sua casa. Era sua. Seu pai legal, José, tinha-lha preparado para quando Ele viesse a este mundo. Mas, por motivos circunstanciais, no momento do seu nascimento havia outros que a necessitavam. Então José, com um gesto decidido, resolveu abandonar o lugar previsto e descer para o tosco estábulo.

Os psicólogos dizem que as experiências pré-natais têm uma influência determinante nas crianças. Seja como for, este acontecimento, que ilustra desde o princípio a educação que Jesus viria a receber no seu lar, haveria de marcá-lo para sempre.

Jesus não nasceu pobre porque as circunstâncias assim o exigiram, mas por uma opção livre de José. E quando cresceu, decidiu abraçar definitivamente a pobreza, à qual foi fiel durante toda a sua vida. Viveu pobre, repartiu o que tinha, rodeou-se dos mais necessitados, comeu o que lhe davam e morreu na mais absoluta indigência. Nunca exigiu nada para si. Não quis ocupar algo que poderia faltar a outros.

Na sua vida, aplicou constantemente o princípio de que se alguém precisasse da sua casa, Ele devia descer para o estábulo. Ao fim e ao cabo, seu pai José tinha-lho ensinado mesmo antes de Ele nascer…

 Ariel Álvarez Valdés,

Sacerdote argentino, biblista

Deixe um comentário